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26.9.10

Tão mais

Vou andando devagar, sento e observo enquanto o vento passa. Passam tantas coisas. Compactas em suas apresentações ínfimas, disfarçadas de sua imensidão particular. Agora tenho essa face velha que vislumbro frente ao espelho, essa pela enrrugada, mas esses olhos que ainda brilham. Os olhos que percebem que o vento passa, vidas passam, cachorros, gatos, amigos, vizinhos, carros..eles passam. E são mais, bem mais do que coisas que passam. São histórias, são mundos, são infinitos guardados num sorriso, numa lágrima. São vidas, complexidades, descontinuidades que se cruzam, se mesclam, formam novas vidas, destroem algumas pelo caminho...são mais, eu digo. E alguém me pergunta:
- O que é mais, meu velho?
- Tudo. - eu digo.
- Como assim tudo?
- Tudo é mais. Bem mais do que podemos enxergar, quiça entender. Mas sentir, sim. Podemos e devemos sentir...coisa tão difícil nesses dias, todos os dias, eu diria. Você, meu jovem, deve pensar nesse momento que não passo de um velho caduco...Eu não me importo, sei que você é mais. Muito mais que essa pele, esse cabelo, essas palavras soltas ao vento...você é um universo mágico, lindo, profundo. Como aquele cachorrinho que está ali, deitado. Fazes ideia do quanto ele já viu, viveu, sentiu nesse tempo que dizemos estar vivos? Ele é um universo...como também é Dona Margarida, aquela senhora solitária, como o motorista do ônibus, como aquela menininha que sempre me dá uma flor colhida do seu jardim, como a própria flor, como a abelha que pousa na flor...como tudo, meu jovem. No entanto, é tão difícil parar e perceber o quão magnífico é a vida...
...
- Vovô, o senhor é feliz?
- Se eu sou feliz? Meu querido...eu já fui muitas coisas nessa vida, eu já quis até acabar com a vida, mas agora, quando me olho no espelho, olhos meus olhos que, ao contrário de todo o resto, ainda brilham e eu vejo tanta vida nele, por ele, através dele...eu só posso dizer que a vida é tão mais que não há como não ser feliz por pertencer a essa grande magia. Você um dia vai perceber que vidas são milagres. Milagres que se desvelam aos nossos olhos a todo momento, mas não perdem sua singularidade...verás que há mais em cada um de nós. Serás feliz por isso.

16.9.10

Permita

Quero mais aqueles dias em que o choro, seja alegre ou triste, salga de lágrimas a língua que anseia pelo doce, o doce que me invade enquanto seus olhos me olham e eu olho tua alma. Há aquele amargo, aquele enjoo de te ver tão de perto, tão por dentro, te ver tão você, finalmente. O sabor que se mistura, a saliva que escorre, a azedo que é estar assim espremendo entre os dentes nossos medos e desejos, o passado e o futuro - o presente que não é mais, perpassa a cenatempoespaço de modo que não sinto, o presente maior que me é dado: não sentir o presente.
Quero mais o mistério, aquele de aspirar o teu hálito enquanto param os segundos, pairam, suspensos na atmosfera que criamos para sermos a fonte de nós mesmos; aquele momento em que hesitamos, em que a língua procura na escuridão total dos sentidos outra perdida nessas bocas secas, amargas, salgadas.
Quero mais a dança dos sentidos, a invasão, a perfuração, inundação da boca, da pele, dos olhos, da mente, da alma. Enche, enche de sal, saliva, açúcar, suco, lágrimas, brilho, tudo, mas enche. Se permita encher, permita ser e preencher. Só permita.

1.9.10

Pas de Deux


E bem além do que se pode ver, sigo a brisa e o mundo de sensações e odores que ela me traz. Sigo o rastro do sândalo, as vidas que nele se inscreveram, as linhas e as curvas paralelas que, mais tarde, se cruzam nisso que, creio, é mistério. É então que me invadem outros sentimentos, me afundam e transbordam e eu danço. Danço até que meus pés risquem o solo, sangrem e me devolvam à terra, à gênesis. Escorro pelo chão, flutuo na água e sou levada pelo vento. Sou terra, sou água e sou ar. Sou mãe e sou filha. Paz e Guerra. Vida e morte. Sou você, e bem mais que você, sou Nós. Te sigo e sinto que me perco. Me perco e desvelo as camadas infinitas de faces, trajes e vidas que compõem isso que vês. Fico nua e encontro. Então eu sou terra, água e ar. Sou efêmera e perene. Sou e estou.
Fênix que dança descalça na varanda da sua vida.


* Foto de Gregory Colbert, projeto Ashes and Snow.