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6.10.10

Indizível

O som dos pássaros pousando no parapeito da janela a acorda. Olha pela cortina fina a luz que, tímida, avança quarto a dentro. Senta-se, calça os sapatos e abre a janela, respira fundo e a fecha novamente. Hora de acordar. Hora de se fechar. Desce as escadas, checa os corredores, as outras janelas, as travas. Todas bem fechadas. Está segura. Prepara o café, separa algumas torradas, as come com geléia enquanto observa a brisa que entra por uma fresta da janela da cozinha. A cortina semi-fechada move-se lentamente com as lufadas de vento. Pequenas partículas de poeira pendendo no ar encantam-na, ah, como gostaria de se ser ela mesma uma daquelas partículas. Mas não poderia. Era uma fugitiva. Reclusa, intocavél. Contentava-se apenas em admirar saudosamente as janelas, a brisa, um pedacinho de azul por entre as cortinas, quem sabe até vislumbrar um qualquer que anda despreocupado pela rua. A porta, seu grande temor, encontrava-se ali, no corredor ao lado, ameaçadora, sombria, fúnebre. Não a olha, preferia assim.
Termina seu café, vai à sala, senta-se numa poltrona e prepara-se para mais uma manhã de contemplação. Mas do que? Da vida que gostaria de ter, das paisagens impossíveis, dos encontros casuais, dos desconhecidos animados e inofensivos que poderia ter em sua vida? Assim consumia as manhãs. Cheias de devaneios, sonhos e mais sonhos de uma realidade surreal que não estava ali, logo atrás da grande porta, mas sim dentro dela. Dentro do imenso casulo que construiu no entorno de sua vida, de suas aspirações. Fugia de quê, afinal? O latido dos cachorros à noite não a assustava, sombras fantasmagóricas projetadas na sua janela não traziam medo algum. Porém, por vezes se pegava pensando no passado, no futuro que já não seria mais aquele que sonhou um dia, numa projeção do que seria ela própria fora do casulo. Isso sim a aterrorizava. O desejo latente, ainda que sufocado, permanecia em si, escondido de suas próprias defesas, driblando as muralhas do casulo, penetrando-a vez ou outra.
Fugia de si mesma, era isso? Não creio, conhecia-se bem para tanto. Fugia do que seria sua existência num mundo real, com pessoas reais, contatos reais, consequências, causas, intenções reais. A possibilidade de ser importante para algo ou alguém a assustava mais que tudo. Então se escondia, fechava-se em seu próprio reduto. Era mais fácil lidar com suas solidões, suas angústias quando eram apenas a respeito de si. A verdade é que tornar-se responsável por um outro parecia-lhe pesado, incerto, incalculável. Seria certo se permitir tal responsabilidade? Era seguro onde estava? Tinha os cálculos feitos, as margens de erro, todas as possibilidades foram estudadas. Sim, era seguro onde estava. Conhecia os caminhos, as pedras, os declives. Outras pedras, outros declives não perturbariam sua caminhada. Se é que caminhava. Talvez apenas sentasse numa poltrona e observasse por entre uma fresta, atrás de uma cortina, a vida que deixou de ter por medo de se arriscar. Talvez aquilo não fosse mais que um sonho. Talvez ela acorde agora: está numa poltrona, o sol se põe, raios de luz projetam seus tentáculos pelo chão até a porta. Ela levanta, calça os sapatos, caminha até a porta e sai. Sorri, é um mundo bonito que se desvela diante de seus olhos. Não há mais porque fugir, quer agora encontrar-se com a realidade.


Neste momento a história acaba. Sua mãe fecha o livro e beija-lhe a testa. Era a história de uma princesa, ao fim ela encontrava seu príncipe e então viviam felizes para sempre. Sua mãe sussura-lhe ao pé do ouvido:
- És uma princesinha linda, tens o mundo inteiro aos teus pés, meu amor. Isso tudo é teu, meu amor também.
Alice está em coma há 8 anos. Tem agora 28. Sonha em ser uma princesa e poder ver o mundo, mas está presa num casulo resistente demais. Talvez devêssem a deixar sair. Há mais formas de estar vivo do que poderíamos verbalizar.

Um comentário:

  1. Há tanta dor fora do casulo como dentro dele, de saudade, de incerteza. Eu, em nome da natureza, dou a certeza da falta da borboleta. À minha Alice , que foi quem me deu tudo.

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