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27.4.11

Coração

Não toque, estava escrito em letras pequenas na placa embaixo daquela estranha e atraente escultura. Não consegui identificar o que era a princípio, uma massa disforme e remendada, vermelha sangue. Não, aquilo não fazia sentido. A tal obra de arte se chamava Partido. Juro a você que aquilo tudo de arte conceitual não me impressiona, na verdade, me assusta. Como alguém pode levar a sério? Que porcaria era aquela, afinal? De toda a exposição, que obviamente odiei, foi aquela escultura, Partido, que me chamou a atenção. Não sei explicar, mas, por mais que eu odiasse estar ali não entendendo bulhufas do que os moderninhos chamam de arte, voltava à galeria todos os dias. Acho realmente que os seguranças e funcionários desconfiavam que eu era algum tipo de psicopata depressivo ou um perseguidor, enfim. Sentava e desperdiçava uma hora do meu dia observando a tal escultura. Dor. É a melhor palavra pra descrever o que sentia naquela uma hora. Dor por algo que não sabia explicar, mas que apertava meu órgãos como se estivessem esmagando lentamente o meu corpo. Uma dor que me fez prisioneiro, sufocava e aumentava sempre.
Certo dia decidi que não iria mais à exposição. Não me submeteria a tal tortura novamente. Passei 4 horas em casa, sentado, deitado, andando de um lado pro outro. Não resisti. Eram 17h e a galeria fechava às 18h, ainda dava tempo. Cheguei ofegante, o segurança da entrada me cumprimentou surpreso. Sentei e de novo a dor. Como uma lufada de vento, abriu as feridas e sangrou minha pele.
"Eu sinto muito", disse alguém atrás de mim. Levantei assustado e encarei a mulher mais linda e triste que vi em minha vida. "Você sente pelo o que?", perguntei. "Você sente, não é?", ela respondeu. Como ela podia me responder com uma pergunta? Quem era aquela mulher? A galeria já ia fechar, aquilo estava realmente estranho; e a dor, ela continuava a arder dentro de mim. Não havia mais ninguém no saguão, apenas eu e a estranha mulher.
"A dor, você sente." - disse a mulher sentando no banco.
Olhei-a confuso e chocado: como ela sabia da dor?
"Sabe, a maioria das pessoas passa direto por esse coração, eu deveria me sentir ofendida, talvez, mas não. De certa forma é bom saber que poucos sentem tamanha dor." - continuou a mulher - "Sei que você vem aqui todos os dias, eu te observo. É difícil, é como se eu sentisse duas vezes, por você e por mim. Mas é bom, você é corajoso. Vem aqui todos os dias encarar o que te rasga e destrói. Eu mal posso olhar. Mas não com você aqui, você me dá força.
"Coração? Do que você está falando? Você é a artista?" - interrompi. A voz dela era uma mistura de canto e confissão. Podia sentir a dor exalar dos seus poros.
"Sim, fui eu quem fiz essas obras. E coração, você não sabe? Partido é o meu. Intocável, sensível, um conjunto de estilhaços. Tive que colar os pedaços e ainda assim existe a dor. Ela nunca foi embora. Mas você já sabia disso, você sente." - respondeu a jovem.
"Você tem razão, eu sinto." - Sentei ao lado dela e a olhei nos olhos, a mais bela representação do amor e suas consequências. Tinha agora minha própria obra de arte.

2 comentários:

  1. Gostaria de colocar meu coração nessa exposição, pra ver alguém compartilhar da dor que às vezes eu sinto. É bom saber que não se estar só quando se está sofrendo, mesmo que isso soe um tanto cruel.

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