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17.7.11

Não há título para este conto

Num vilarejo remoto, um lugar dividido entre grandes agropecuários e um povo escravo do latifúndio, certo dia, ao nascer do dia, nasceu do ventre de Madalena um serzinho encolhido e repuxado. Como quem não queria sair das trevas, gritou quando o retiraram das entranhas da genitora, recusando a abrir os olhos, foi açoitada por algum dito médico, abrindo finalmente os olhos pra mirar pela primeira vez uma fresta de luz que entrava pela janela. Devido a grande revolta em nascer, colocaram-lhe o nome de Hera. Antônio, seu pai, importante criador da região, foi o idealizador do nome, nas horas vagas ele gostava de dedicar-se ao estudo da história, filosofia e artes. Bom, foi também nessas horas vagas que Fernando, braço direto de Antônio, fecundou o ventre de Madelena sem que o marido soubesse. Eis a 'árvore genealógica' de Hera, menina que nasceu com cara de nojo, já insatisfeita com a situação em que foi gerada.



Quieta, foi crescendo sem que sua mãe a percebesse, esta sempre estava ocupada com a nova coleção de sapatos que seria lançada na capital - a qual sempre era levada pelo fiel empregado da família, Fernando - ou torrava o tempo paparicando o marido, quando este saia da biblioteca. Era uma boa esposa, não posso negar. Alimentava-o, satisfazia-o, tomava todos os cuidados para que ele não descobrisse seu adultério. Antônio, por sua vez, vivia uma vida menos agitada, da fazenda para casa e, nessa, não saia de perto dos seus livros, distraindo-se apenas com a pequena Hera, que desde cedo trocou os brinquedos pelas edições velhas e ruídas dos clássicos da mitologia de seu pai. A filha era sua maior felicidade, ela não parecia com a mãe que, mesmo sendo uma esposa exemplar, nunca o satisfez por completo, como também aquela vida de agropecuário. Antônio sempre quis estudar, viajar, explorar o mundo e suas oportunidades, mas sua vida foi ceifada quando seu pai morreu cedo e deixou-lhe os negócios da família. Com os sonhos veio também a negação, Antônio nunca conseguiu realizar o desejo estranho e poderoso que sentia de aproximar-se de Fernando, seu principal funcionário, o qual praticamente tocava a fazenda sozinho.



Assim era a dinâmica da casa, Fernando entrava e saia a todo momento, sendo constantemente requisitado pela mãe e pelo pai, enquanto Hera caminhava sorrateira pelos cantos e quinas da casa, sempre encolhida e intimidada pela presença daquele homem. Desde que se entendia por gente ele o olhava de maneira estranha, ela não sabia explicar o que aquilo significava. Mas daí que Hera cresceu, e cresceu como espectadora privilegiada da encenação que tinha como família. De coisinha encolhida, a menina tornou-se bela logo cedo, passando a chamar a atenção de sua mãe, que vez ou outra a tentava cooptar para discussões sobre novas tendências da moda parisiense. Hera escapava com facilidade, refugiando-se com seu pai na biblioteca, onde todos os dias ela conhecia alguém especial, de Heráclito a Sartre, passando por Hitler e chegando a Dan Brown. Facinava-a a diversidade de pensamentos das pessoas, ela se alimentava de cada sílaba e a absorvia de maneira singular: Hera não acreditava em nada, mas encantava-se por conhecer tudo, não conseguia concordar com nada, estava sempre a questionar. A menina que tinha tudo aos seus pés nunca suportou ter ordens apenas acatadas. Quando mais nova, costumava brincar com algumas crianças da fazenda, estas eram avisados por seus pais para a tratarem com distinção, mas Hera, insatisfeita, provocava as crianças e arrumava brigas com os meninos, pelo simples prazer de ser contrariada e ter uma relação legítima com qualquer um.



Hera queria o caos em sua vida. Não admitia a inércia com que seus pais se acomodaram e estagnaram suas vidas. Foi assim que, aos 17 anos, viajou para outro país, a princípio para estudar. Infelizmente para ela, o mundo pareceu mais uma extensão daquilo que ela sempre teve em casa. A menina que rapidamente tomara feições de mulher, experimentou do céu e da terra tudo o que lhe vier à mente, mas nada a fez acreditar em nada. Apesar disso, creio que que felizmente, a garota não se sentia vazia, não, Hera gostava de pensar que era sedenta por ser preenchida, portanto não havia motivo para encerrar sua vida, ela gostava dela afinal.



Ela se envolveu nos mais diversos movimentos, sem nenhum apego especial, satisfazia-se com a experiência mesmo. Hera era doce, tenho que confessar. Dificilmente brincava em seus lábios um sorriso que só posso descrever como a primeira fresta de luz que entra pela janela e queima a pele vagarosamente, deixando um rastro de arrepio. Fora o sorriso, que era um oásis no meio do caos, eram os olhos de Hera que faziam todos prender a respiração. Olhos negros como petróleo, profundos e confusos. Eu perdi a conta de quantas vezes me afoguei naquele olhar encoberto por uma mecha de cabelo. Os olhos da menina eram a entrada para as trevas que dominavam seu coração-cérebro - pois aqui te aviso logo, Hera não tinha um coração e um cérebro. Ela tinha algo estranho, que preferiu unir e ser a razão dela nascer assim, estranha ao mundo e a si própria.



É engraçado como as horas marcaram a vida dela, a conheci quando a primeira fresta de luz rompeu o céu negro. Ela estava sentava na areia e, enquanto as pessoas ao redor ou drogavam-se ou estavam envolvidos numa orgia, ela apenas abraçou as pernas e encostou o queixo no joelho, como numa posição fetal. Balançando devagar de um lado para o outro, ela começou a murmurar alguma canção para embalar seus demônios e anjos, eu imagino.



Eu nunca estive tão atento a aquela menina por quem todos perdiam a cabeça e constantemente fugiam sem motivo aparente. De algum modo, ela compreendia que não era aceita pelo que era. Até os mais modernos e transgressores recuavam na presença real dela. Mas naquele momento em que ela embalava a si própria no meio do caos meu cérebro parou e fiquei suspenso no tempo pelo que pareceu ser horas, enquanto eu apenas ouvia o ruído da sua voz trazida pelo vento. Hera nunca soube, mas naquele amanhecer ela tornou-se dona da minha vida. Eu era seu fiel escudeiro(não que ela precisasse de proteção), seu melhor amigo, seu amante nas horas de carência. Mas eu nunca pude confessar que a queria pra mim, já que eu nunca a teria, ela não nasceu pra ser de ninguém. Hera se traduz em medo e desejo para mim que, covarde, deixei por muito tempo o medo prevalecer. Certa vez eu vi coração e cérebro de Hera explodirem de insatisfãção, creio ter sido o momento em que a ela esteve mais insegura em suas certezas, quando me confessou: "Eu devo viver". Então ela me sorriu, uma fresta de sol entrava pela cortina e as portas das suas trevas se abriram na minha frente. Hera moveu os lábios lentamente como se aquilo a machucasse e disse "Você deveria ter dito que me amava". Aquilo me atingiu como uma rajada de vento e eu não pude respirar enquanto observava seus olhos e suas trevas se afastarem e o sorriso que brincava em seus lábios se desfazer. No segundo seguinte eu disse, confessei a ela o meu amor, mas já não havia trevas ou oásis. Hera foi brincar em outros campos ou numa nuvem qualquer.



Seu não-lugar no mundo, seus questinamentos, sua vontade de conhecer, no entanto, não morreram. Aquela menina que necessitava ser preenchida e que não encontrou o que procurava - se é que procurava algo - me ensinou que eu deveria ser menos eu. Foi esse medo e esse recuo de todos, sem exceção, que trouxeram o fim da sua história antes que ela tivesse seu clímax. Foi minha culpa. Você teve culpa, todos nós tivemos. Não existiu nada mais assustador, e provavelmente nada mais apaixonante, do que as trevas daquela menina solitária, com nome de deusa e desejo de vida. Ela tinha o mundo aos seus pés, mas o que precisava era apenas um alguém dentro de si, sem medo do que havia nela e do que ela era.

Um comentário:

  1. Eu gostei de Hera. =)

    Me lembra Capitu, de algumas formas. E o melhor, de outras não.

    Ela é mais real...

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